terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Ida ao mercado

Depois daqueles três dias de calor apocalíptico, enfim o vento soprou. Os pombos saíram em revoada. O céu escureceu de repente. Trovejou forte, como se a natureza anunciasse um espetáculo. A chuva chegou devagar e se fez percebida pelo barulho das gotas que pingavam no seu rosto, já que dormia com a janela aberta. Ele acordou inebriado pelo cheiro de chuva. Olhou pela fresta da cortina e admirou o céu por alguns instantes. Observou ao fundo e viu que o alaranjado do sol ainda tentava desafiar a negritude das nuvens. Passavam das seis da tarde. Decidiu ir ao supermercado, pois o clima da rua convidava para um passeio. E para Nicolas, não havia lugar melhor para passear que o supermercado. Um gosto inusitado, assim como muitos outros que cultivava.

Vestiu bermuda, camiseta e boné. Pegou alguns trocados em cima da geladeira, colocou um chinelo e desceu. Misteriosamente lhe agradava sobremaneira esse ritual de sair sozinho para o supermercado, mesmo sabendo que enfrentaria uma fila de trinta minutos apenas para comprar três cervejas e um maço de cigarros. Mas esse momento é para ele um lapso temporal na rotina, um parêntese no dia, quando os pensamentos de sua mente inquieta dão espaço ao exercício de observar e admirar a variedade humana. Refletir sobre si, sobre os outros, sobre o mundo.

As duas quadras que Nicolas percorre a passos descomprometidos é um museu de tipos e personalidades dos mais variados. Entre bares, bazares e ateliês; em meio a mendigos e boêmios; onde cores e amores dos mais diversos interagem e se misturam. Nem as paredes pichadas, os mendigos pelo chão, os pedintes e o cheiro de urina lhe incomodam. Pelo contrário: para ele, até a tragédia pode ser interpretada como uma das tantas facetas que fazem parte da existência. Afinal, a aventura humana jamais será perfeita e a miséria que nos afronta é a prova escarrada de nossa própria incompetência.

Aquele universo tão rico, tão nostálgico e ao mesmo tempo tão dramático é onde Nicolas caminha lentamente sob a chuva de verão a caminho das compras. Talvez por isso ela goste tanto de ir ao supermercado.

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